25/07/2022

Chapeuzinho Vermelho e o Lobo (nem um pouco) Mau

Assim como tantas outras obras minhas, essa daqui tem um cantinho especial no meu coração. Hanako e Nene são um dos meus casais favoritos e não é segredo pra ninguém do fandom, que a química entre eles dois é tão maravilhosamente palpável(?) que não fica difícil imaginá-los nos mais diversos universos alternativos.
Não sei ao certo o que motiva muitos de nós, fãs de HanaNene, a imaginar um universo alternativo em que a Nene é a chapeuzinho e Hanako, o lobo. Não, espere! Acho que sei sim! Tem como não imaginar isso ao se deparar com o sorrisinho lânguido do Hanako exibindo os caninos? Principalmente quando ele direciona isso para a heroína de olhar e postura angelical? AH! TÃO PERFEITOSSS! *contorcendo de alegria* ~ Cara, eles são lindos demais. ~~
O universo em que me baseei não é um canto específico da Europa, então ao longo do texto haverão menções a comidas e vestimentas de vários países europeus, como Rússia, Polônia, Alemanha e outros. No final, pra quem quiser, coloquei um glossário pra explicar o que cada coisa é.
Deixa eu ver o que mais eu queria falar... Ah, lembrei! A ideia dessa estória não foi inspirida em qualquer fanart online (na verdade, só tive ciência da enorme quantidade delas depois que comecei a desenvolvê-la) e embora a fanfic siga a premisso do conto original, fiz muuuuuuitas alterações. Me empolguei demais a escrevendo e espero que vocês apreciem.
Boa leitura <3

 Jibaku Shounen Hanako-kun (地縛少年花子くん
 [Oneshot]

¸.•✧・゚: ‧̫‧ ⊹ ̥ ̮ ̥ *⋆⍋‧̥̥‧̥̥͙・゚✧*:・゚✧✯ 

Era uma vez um pequenino chalé que ficava bem no alto de uma montanha, à costa norte de uma ilha pacífica e pouco povoada. A relva clara e aveludada que crescia no chão, serpenteava entre as touceiras de álamos e conduzia até o alto da montanha numa gentil subida. No verão, crocus violetas, flores de algodão e de trigo sarraceno ramavam pelo chão e convidavam borboletas, abelhas e turdídeos; no inverno, os ventos do oriente eram salitrados e carregados de maresia, umedecendo o solo e arrastando-no em direção às águas frias e revoltas do mar. Na enseada, os dias sempre eram calmos e proveitosos, e a comunidade local vivia da pesca, do artesanato e da agricultura.

A pequena casa situada no topo da montanha, de longe, assemelhava-se com um pequeno borrão solitário. Nos momentos em que o sol estava forte, seu telhado brilhava como cobre; e quando o inverno dava as caras, a neve recobria-o com esmero. A boa e velha chaminé quase sempre estava fumaçando — um evidente sinal do quão frios costumavam ser os dias ali. Era uma construção simples e rústica, mas que carregava a beleza típica de seu modelo arquitetônico, exalando a essência da vida pacata e serena da ilha.

E naquela momento, dentro da aconchegante casa, Yashiro Nene desfrutava de seu passatempo favorito, comandando a cozinha com maestria enquanto preparava a shchi¹. Cada colherada da sopa emitia um vapor quente e perfumado, que flutuava pelo ar como uma sinfonia de aromas. O avental branco que vestia era como um escudo de batalha contra as eventuais respingadas da sopa borbulhante, enquanto ela mexia com carinho a panela de ferro.

A cozinha era um espaço que parecia vivo, como se respirasse junto com a jovem cozinheira. As madeiras que constituíam as paredes e assoalho da casa, eram em tons vibrantes de caramelo queimado e emanavam um aroma reconfortante, como o de uma lareira acolhedora em uma noite fria de inverno. O teto possuía declives, e no centro do banzo inferior havia um aramado com panelas de ferro, caçarolas e enormes talheres. Prateleiras com canecas, bules de chá e potes de vidro e porcelana rodeavam o espaço. O pequeno fogão multi-combustível à lenha, no qual Nene cozinhava, destacava-se ao lado do balcão de pratos e toalhas de mão. Uma mesa forrada de quatro cadeiras e com uma fruteira em cima, ficava ao centro. Ao norte da cozinha, defronte à gasta pia esmaltada, havia janelas recobertas por cortinas florais de bordados e pregas suaves, as quais exibiam a esplêndida vista do mundo que desaparecia — céu azul, nuvens brancas, montanhas ao longe e um mar índigo logo abaixo. No canto da parede, um relógio antigo e ruidoso fazia sua função, como se acompanhasse o ritmo da vida que se desenrolava ali dentro. Embora sombrio, o local era claro o suficiente para trazer um ar de conforto e despretensão.

No meio de tudo isso, Yashiro Nene era a regente dessa sinfonia de sensações. Cada movimento que ela fazia era como uma nota musical, combinando ingredientes e temperos em uma dança delicada e precisa. Tudo era feito com amor e dedicação, e o resultado final era uma refeição que alimentava não só o corpo, mas também a alma.

Nene fechou os olhos e inspirou fundo, deleitando-se com aquele prazer que era estar ali.

Para ela, cozinhar trazia-lhe paz. Graças aos pais, que desde cedo a ensinaram tudo o que sabiam, tornou-se uma garota engenhosa e independente. Sabia fazer tudo. Era boa não somente cozinhando, mas também sabia fazer as próprias roupas, fármacos, artesanatos, bijuterias, pinturas e, até mesmo, móveis.

Yashiro Nene era alguém a quem todos conheciam e estimavam. Era uma garota doce e fofa, que encantava a todos com seu carisma. Costumeiramente saía de casa vestida em seu capuz vermelho para vender suas comidas, o que lhe rendeu o apelido de chapeuzinho vermelho.

Depois de alguns minutos mexendo o preparo, Nene pegou a colher de pau e, depois de se certificar de que estava morno, derramou um pouco do caldo acima do pulso e lambeu o local.

— Hmmm!! Delicioooso — deu um gritinho cheio de satisfação. Seus olhos estavam brilhando emocionados. — Tenho certeza que a Mei-chan também vai adorar — falou ela assim que apagou o fogo.

Com dificuldade, transferiu a caçarola para o balcão da pia.

Ao terminar, sentou-se, ofegante, numa das cadeiras da mesa. Precisava descansar nem que por apenas um minuto.

Naquele momento a luz matutina adentrava pelas janelas, denunciando quanto tempo já havia se passado desde que Nene entrara ali.

Haviam se passado o quê? Umas quatro horas? Nem mesmo ela sabia há quanto tempo estivera trabalhando em pé. 

Desde que ficara sabendo, no dia anterior, por meio de um morador local, que sua frágil prima estava — novamente — enferma e acamada, dedicara todo o seu tempo e esforços para cozinhar uma refeição para ela, em prol de curá-la.

Nene era uma boa garota e sentia-se bem em trazer alegria aos outros. Além disso, Mei era um amor de menina que fazia valer todo o seu esforço. Era a familiar mais próxima de si no momento, já que seus pais — novamente — estavam pescando mariscos na costa oeste, localizada a quilômetros de distância de onde residiam — tinham plena confiança na independência da filha, ao ponto de deixá-la sozinha por dias. Estava sentindo falta daquele ar de família, por isso, achou que seria uma boa ideia fazer uma visita a sua prima que há tantas semanas não via.

Passados alguns minutos, Nene levantou-se e voltou a seus afazeres.

Com cuidado, transferiu a sopa, ainda quente, para dois potes de vidro diáfano e os fechou com a tampa. Em seguida, juntou os mesmos ao resto das comidas que tinha feito anteriormente, as quais jaziam organizadas dentro de uma cesta de mão.

— Terminei — declarou para si mesma, um pouco cansada mas ainda assim feliz.

Sem perder tempo, Nene deixou o local e foi em direção à sala de estar, a qual era separada da cozinha unicamente pelo balcão da mesma. Tão pouco iluminada quanto o resto da casa.

Sofás e poltronas antigas, ricas em estofado e almofadas, ficavam em frente à lareira de pedra. Na superfície da mesma, havia uma linda fotografia em preto e branco de um jovem casal de pescadores, na qual a mulher segurava com orgulho uma criança sorridente em seus braços — eram os pais de Nene e ela quando havia acabado de completar um mês de vida. Acima dela, uma pintura a óleo em cores vibrantes, na qual uma camponesa de cabelos negros e olhar inocente reclinava-se para colher flores num bosque escuro e ventoso; possuía um quê de perigo e sortilégio, ligeiramente subliminar. Ao lado, um cabideiro de madeira no qual repousava um lindo capuz vermelho sangue.

Nene removeu a bandana e o avental que até então vinha usando, e pôs o capuz sobre o vestido que trajava. Depois, calçou as botas de cadarço que descansavam no chão, ao lado do cabideiro.

Terminado de se vestir, voltou à cozinha e pegou a espaçosa cestinha de vime. Segurando-a pelas alças, foi em direção à porta, a qual abriu.

Diferentemente do interior da casa, aquele era um lugar banhado em luz dourada. O vento salgado e fresco chacoalhava as árvores e mesclava-se ao som dos pássaros e das risadas de crianças ao longe.

Nene desceu calmamente a montanha, adaptando-se à claridade. Chegando ao vilarejo, fez o que sempre fazia: saudou cada conhecido por quem passava.

Quando passou pela casa dos Minamoto, avistou seu amigo Kou com uma enxada na mão, arando o solo para plantar repolhos.

— Ah, bom dia, Senpai!! — disse o loiro sorrindo, a cabeça coberta com um chapéu de palha. Os olhos tão azuis e vibrantes quanto o céu. Ele sempre era cheio de energia e bom humor, mesmo às sete horas da manhã. — Vai sair? — apoiou-se na pá de maneira despojada.

— Uhum, vou sim — assentiu. — Vou visitar uma prima muito querida que está resfriada. A casa dela fica fora da ilha.

— Ó, eu tenho algo ótimo para curar resfriados — anunciou, os olhos enérgicos. — Espere só um minutinho!! — enfiou uma das mãos dentro dos bolsos da jardineira, procurando ansiosamente por algo. — Aqui, achei! — ao tirar o punho fechado de dentro, estendeu a mão em direção à garota e exibiu uma cabeça de alho, a qual estava suja de terra e ainda com raiz. — Eu acabei de colher. Pode entregar pra ela — sorriu largo.

Nene sorriu. Kou era uma das pessoas mais gentis e altruístas que conhecia. Mesmo que aquele fosse um produto de seu esforço, não via problemas em dá-lo para alguém que nem ao menos conhecia. Não era à toa que ela o considerava tanto.

— Obrigada, Kou-kun, mas não precisa se preocupar com isso. Eu já preparei um monte de coisas pra ela — agradeceu ela, mostrando a cesta que carregava em mãos. — Na verdade, sou eu que tenho algo pra te entregar!!

Kou a observou com curiosidade, vendo ela abrir o tampo da cesta e procurar por algo.

— Aqui, pra você! — declarou assim que pegou um pote de vidro transparente e o estendeu em direção ao amigo.

Vendo a confusão no rosto dele, ela explicou:

— Fiz sopa demais, e reservei essa porção pra você — inclinou o rosto minimamente para o lado e sorriu meiga. A franja recaindo graciosamente por sua testa.

Naquele momento, o garoto sentiu as bochechas corarem e numerosas flechas atingirem seu peito. Ela tinha um sorriso muito lindo. Não era segredo para ninguém o quão caidinho era por sua senpai — exceto para ela, obviamente.

— Obrigado — disse atarantado, pegando o presente.

— De nada. Tchau, Kou-kun!! — acenou a garota, dando-lhe as costas e voltando a caminhar alegre. 

Depois de alguns segundos, após estar recuperado da emoção, lembrou-se de dizer:

— Tchau, Senpai!! — gritou. — Tenha cuidado pelo caminho. Andam correndo por aí uns boatos de que tem um lobo na floresta!! — alertou.

A garota, entretanto, não compreendeu o fim da frase, e supôs que se tratava de simples palavras de despedida. Tudo o que fez foi virar e acenar.


O trajeto para chegar à casa de sua prima era uma jornada que Nene já conhecia bem. Começava com a travessia de barco, onde ela sentia a brisa salgada do mar acariciar seu rosto, enquanto a embarcação balançava suavemente nas ondas. Mas era na floresta que a verdadeira aventura começava.

Foram necessários quinze minutos de caminhada para que Nene, de fato, chegasse à floresta. Os primeiros passos eram dados em meio a um emaranhado de arbustos e plantas rasteiras, resistentes como a própria ilha. Mas conforme ia se afastando do mar, o cenário se transformava em um oásis sombrio de plantas gigantes e vida selvagem. Nene se maravilhava com cada detalhe, sentindo o aroma fresco de líquens, musgos úmidos e flores que preenchiam o ar.

A caminhada seguia compassadamente, com Nene apreciando cada centímetro daquela beleza imaculada. Era uma garota que se encantava com as pequenas coisas, parando para pegar pedrinhas brilhantes do chão ou um buquê de flores que seriam a decoração perfeita para a mesa da casa de sua prima. Cada passo dado era uma descoberta, uma jornada em que ela se sentia parte integrante da natureza que a rodeava.

E foi em meio a mais uma de suas paradas desnecessárias no meio do trajeto, que ele a avistou. O Lobo. Ou melhor dizendo, o garoto metade lobo.

Tão indefesa...

Esgueirando-se por entre as árvores, ele a observava curiosamente a alguns poucos metros de distância. Os olhos focados inteiramente nela. A barriga roncando de fome, pois o cheiro que vinha daquela cesta era delicioso demais para ser ignorado por seu nariz ultrasensível. As presas em sua boca rangendo, ansiosas por comida.

Enquanto a inocente garota recolhia bolotas caídas no chão, a cestinha — ou melhor dizendo, cestão — permanecia esquecida bem ao seu lado, seduzindo o lobo a querer roubá-la para comer todas as delícias que nela haviam.

Um sorriso audacioso brotou em si.

A verdade era que ele poderia aproveitar o ensejo, surrupiar o objeto e zarpar dali com ele em mãos. Na teoria era incrivelmente fácil, mas na prática, não era tão simples assim. Ela não era a primeira viajante a qual decidia roubar. De um modo geral, era péssimo com aquele tipo de coisa e não tinha uma única vez em que a vítima de suas artimanhas não o agredisse. Não havia nem dois dias que apanhara de um garoto andrógeno escandaloso e de cabelos rosa, que não só o fez sair correndo como um cãozinho assustado, como também fez questão de tagarelar aos quatro ventos que na floresta havia um lobo perigosíssimo que gostava de roubar cestas de piquenique de pessoas indefesas — aquilo chegava a soar irônico.

O lobinho fechou os olhos e arfou exasperado, relembrando os fracassos anteriores. Aquilo era tão ultrajante! Estava sendo cada vez mais difícil conseguir os lanches de cada dia. As pessoas eram sempre tão más e egoístas! Não havia ninguém que se compadecesse de sua fome e lhe desse o que comer de boa vontade. Os gestos de caridade para com o próximo, nunca sendo praticados. Depois achavam ruim quando precisava recorrer a métodos não muito honestos, por assim dizer.

Ah, mas naquele dia iria voltar com comida para casa! 

E ninguém iria impedi-lo.

Determinado, secou a saliva que escorria pelos cantos da boca e aprumou as costas. Não podia falhar de novo! Se desejava levar comida para casa, precisava ser convincente em sua abordagem.

Sem perder tempo, o lobo tratou de vestir o disfarce de ovelha que sempre carregava consigo. Terminado de fechar o zíper, ele conteve uma risadinha maquiavélica.

Estava perfeito. Ela nunca iria perceber!

Mesmo sendo uma roupa pra lá de quente, que só deixava à mostra seu rosto, valia o esforço. Ele então caminhou vagarosamente em direção à garota. Pé ante pé. Os passos quase inaudíveis.

Nene, que estava de cócoras, sentiu um calafrio quando ouviu o som da grama ser pisada próximo de si. O acelerar do coração foi inevitável — assim como o pulo exagerado que deu.

Inquieta com a evidente aproximação de um desconhecido, cuja sombra pairava acima de seu corpo, a garota virou o rosto e deparou-se com uma cena um tanto quanto suspeita e... inusitada.

Frente a ela, estava um garoto em pele de ovelha, no sentido mais cru e literal da expressão. A qualidade da fantasia era tão precária que chegava a ser cômico.

Nene recuou um pouco. As sobrancelhas retas, as mãos recolhidas de encontro ao peito. Não estava esperando encontrar alguém na floresta logo tão cedo — ainda mais, vestindo uma roupinha tão medíocre.

Uma presa fácil, ele debochou em seu íntimo ao vê-la naquela posição encolhida. Aos seus olhos, a garota parecia uma gatinha pequena e frágil.

Com efusividade, ele disse:

— Olá, bom dia!! Eu sou o Carneiro. Prazer em conhecê-la~ — sorriu maroto e fez um V com os dedos/cascos.

Nene franziu o cenho mediante àquela apresentação duvidosa, mas ainda assim falou:

— Olá, bom dia… — pegou a cesta do chão e a abraçou. — O prazer é meu — sorriu cortês, dando uma sutil reverência.

— Ah, — ele respirou vigorosamente, expandindo os pulmões com o máximo de ar que conseguia e inalando o cheiro das comidas. — hoje tá um belo dia, né? — falou com altivez, enquanto observava o céu.

— Sim, está — aquiesceu ela.

Depois de tantos dias nublados, um sol brilhante era tudo o que mais vinha desejado. Por certo, aquele sem dúvidas era um ótimo dia.

Com expressão gáudia e relaxada, ele direcionou-lhe a atenção e lançou a isca:

— Eu realmente gosto de dias ensolarados. Me deixam inspirado a — roubar cestas de piqueniques — fazer boas ações!! — forçou um sorriso bonachão.

Nene sentiu algo de bom aflorar em seu interior, e estranhou aquilo; porque ainda que tivesse evidente respeito por todos aqueles que prezavam por tais condutas virtuosas, sentia que não havia genuína franqueza nas palavras ditas por ele. Por algum motivo não acreditava que ele era o tipo de pessoa que fazia boas ações — talvez fosse seu olhar ligeiramente irônico e subversivo que o entregasse. Em suma, estava simpatizando com alguém que não parecia mais digno de sua confiança do que um golpista.

Aquela maldita roupa que ele usava também não contribuía em nada na sua condenação. Muito pelo contrário, sentia uma vontade imensa de rir.

Que problemático.

— É, eu também gosto de dias com sol — ela se viu na obrigação de concordar e olhou para cima, observando o céu parcialmente encoberto pelas copas das árvores; passarinhos voando por sobre as folhas. — Eles sempre são mais divertidos, principalmente depois de tantos dias sem ele — voltou a olhar para frente. — Fico feliz que também goste de praticar boas ações — deu um meio sorriso, que embora fosse falso, carregava consigo uma parcela de verdade e bem querer.

O garoto deu um sorriso de canto.

— Ah, eu simplesmente adoro — garantiu.

E mudando completamente o rumo da conversa, perguntou:

— Você mora por aqui? — olhava-a nos olhos com desinibição.

Nene corou um pouco.

— Ah, não, eu apenas vim pra cá porque preciso visitar a min- — iniciou a frase mas logo parou, ciente de que não era bom falar demais.

Controle-se, Yashiro! Não confie nele, hunf.

— Ei, por que quer saber? — disse desconfiada, franzindo o cenho.

Ele deu um sorrisinho torto.

— Ué, simples curiosidade — deu de ombros. — Fiquei interessado em você e estou tentando me aproximar, caso não tenha percebido — falou com imensa naturalidade.

A garota sentiu todo o rosto aquecer. Por acaso aquilo era uma cantada? Estava mesmo sendo paquerada por um garoto vestido de ovelha? Aquilo era sério? E o pior de tudo: Estava mesmo afetada por conta de um flerte vindo de alguém excêntrico como ele?

Por muito pouco, não tartamudeou ao falar:

— Não, não moro — e com urgência, emendou: — E você?

— É, mais ou menos… — ele respondeu de forma enigmática, dando um sorriso.

E antes que Nene pudesse sondar mais, logo acrescentou:

— Sou apenas um inocente carneiro que dormia à sombra de uma árvore aqui por perto — explicou astucioso, aproximando-se lentamente em direção da garota, ao ponto de ficar numa perigosa distância de apenas dois pés dela; a respiração tão próxima que chegava a ser audível.

Nene engoliu em seco, surpresa com a proximidade por ele estabelecida. Os olhos dele brilhavam como chamas em direção a ela; exalavam tudo, menos inocência.

A brisa soprava ao oeste, fazendo as árvores dançarem em ondulações por trás dele.

Com o timbre um pouco mais arrastado, ele prosseguiu seu discurso. A vibração de sua voz fazendo a garota retesar.

— Por ser alguém muito bom e altruísta, vim ver se você precisava de ajuda com a cesta — umedeceu os lábios e sorriu largo, inclinando a cabeça e expondo as gengivas rosa.

Nene sentiu o rosto esquentar ainda mais — se é que tal coisa era possível. Havia algo naquele sorriso que era incrivelmente charmoso, sedutor e… predatório!

Ao cair em si, Nene arregalou os olhos e arqueou uma sobrancelha. Não era lerda — idiota seria a palavra mais exata — ao ponto de ignorar os caninos afiados que se projetavam em meio ao sorriso daquele garoto.

Que ele não era um carneiro era mais do que óbvio, — na verdade, sentia-se imensamente ultrajada por ele pensar que seria burra ao ponto de cair num truque daqueles — no entanto, nunca pensara que por trás daquela fantasia pudesse se esconder algo que lhe oferecesse iminente risco.

Nene preferiu agir com cautela e entrar no jogo. Não podia se precipitar e botar a própria segurança em cheque.

— Waaah, que carneirinho gentil você é — falou com candura. — Muito obrigada por se oferecer pra me ajudar, mas não precisa. De verdade — dissimulou um sorriso doce e fez um gesto de pouco caso com a mão. — A cesta não está tão pesada, — estava sim — além disso, já estou perto do meu destino. — mentira de novo.

Nene sabia que não era a melhor das atrizes, mas acreditava ter sido convincente em seu teatro.

O lobo, todavia, não pareceu em nada afetado por suas palavras. Muito pelo contrário, pareceu ainda mais instigado a concretizar seu desejo.

— Ah, mas esse carneiro aqui insiste em ajudá-la!! — disse com muita determinação, colocando a mão no peito em sinal de honra. — É como ditam as normas do cavalheirismo: Um homem deve ajudar uma mulher. Permita-me que segure.

E em questão de segundos, Nene se viu de mãos vazias; a delicada cesta nas mãos do desconhecido frente a ela.

A garota arregalou os olhos. Ele havia tomado a cesta de suas mãos sem que ao menos ela pudesse sentir.

— E-Ei, como você… Me devolva!! — atordoada, ela apontou-lhe acusadoramente o dedo indicador. — Eu disse que não preciso e nem quero sua ajuda!!

O lobo, vendo que ela não ia deixá-lo colaborar consigo, fez a única coisa que conseguiu pensar: saiu correndo com a cesta em mãos.

Fazer o quê. Não queria ter que dar no pé tal como nas outras vezes, mas ela não havia lhe dado outra escolha.

— Rá, você não me pegaaa, na na na na na!! — cantarolou ele, dando a língua infantilmente e escapulindo a todo vapor.

Nene, estupefata com tudo aquilo, ficou estática apenas por alguns segundos, até compreender que, de fato, havia sido furtada. Passado o choque, não tardou em o perseguir com toda a fúria que estava sentindo.

Era só o que lhe faltava.

E assim ela fez: pulou por sobre troncos caídos no chão, formigueiros, plantas espinhentas e colmeias; enquanto ao mesmo tempo gritava para que ele parasse e devolvesse a sua cesta. Depois de muito correr e driblar obstáculos, conseguiu ficar novamente perto dele.

10 cm. Era tudo o que precisava para tocar suas costas.

— Seu carneiro de meia tigela! — bramiu ela, tentando, sem sucesso, agarrá-lo. — Isso é meu!! É melhor me devolver antes que se arrependa… — dizia já com dificuldade, o capuz agora abaixado. O corpo inteiro quente.

Abraçando firmemente o cestão contra o peito, o garoto virou o rosto e arregalou os olhos, vendo o quão próxima a garota estava de si. Era surpreendente que uma jovem como ela — aparentemente tão fraca — conseguisse se deslocar com tanta precisão e rapidez em meio a caminhos tão sinuosos e repletos de arbustos e galhos como aquele.

Em meio às sombras das árvores, os olhos dela brilhavam como labaredas de fogo magenta; e ao ver aquilo, o garoto não pôde evitar ficar cativado e dar um meio sorriso — que aos olhos dela mais pareceu com uma provocação.

— Incrível — ele verbalizou o pensamento em voz baixa.

Aquele, entretanto, não era um momento propício para se divertir admirando a presteza e determinação alheia. Ele precisava olhar para frente e acelerar.

Sim, sim, foco!

— Essa é a última vez que eu digo: Me devolva!! — gritou ela, o cansaço transparecendo na voz quando a mão estendida estava prestes a tocar-lhe o ombro.

Àquela altura, Nene estava posicionada ao lado dele, prestes a tomar de volta o que era seu.

E quando o lobo finalmente voltou os olhos para frente, foi tarde demais. Diante dele, havia uma enorme e retorcida raiz que cruzava por cima do caminho. Não tivera sequer tempo de desacelerar ou pular; apenas de dizer um uh-oh, erguer a cesta no alto da cabeça e cair de rosto no chão.

Aquele azar, entretanto, não foi individual. Nene, que quase estava comemorando a vitória, teve o mesmo destino humilhante — e doloroso! — que seu adversário, tropeçando exatamente ao lado dele.

— Ai, ai, ai, ai, ai! — gemiam eles, sentando-se lado a lado sobre o chão, ofegantes e massageando as testas.

Passaram-se longos segundos até Nene virar o rosto em direção a ele, e o mesmo pensou que caso ela fosse capaz de soltar raios, sem dúvidas ele já estaria completamente carbonizado.

— Isso foi culpa sua! Caí por sua causa! — ela conflagrou-o assim que se levantou do chão, os braços cruzados.

— Minha causa? Eu, hein! Que eu saiba foi você que estava me perseguindo como uma maluca — respondeu petulante, em pé de igualdade com ela.

— Eu não teria te perseguido se você não tivesse roubado a minha cesta! — rebateu ela.

E foi ao se referir à cesta, que a garota reparou que ele já não a segurava mais. No momento em que ele se levantara do chão, esquecera de pegá-la.

Os olhos de Nene brilharam ávidos, e instantaneamente o lobo captou sua intenção.

— Ah, nem pense nisso!! — mais rápido do que ela, agachou-se, pegou a cesta aos seus pés e a ergueu no alto da cabeça, valendo-se de que era poucos centímetros mais alto do que a garota.

Nene praguejou ao ficar nas pontas dos pés para tentar agarrá-la. Seu esforço de nada valia, pois ele também estava de pontinha de pé.

— Por que você está fazendo isso comigo? Eu nem ao menos te conheço!!

Nene bufou, esticando o braço para tentar alcançar, sem sucesso, a cesta. O corpo dela se projetando para frente, próximo até demais do dele.

— Ah, não leve ʽpro lado pessoal. Eu realmente gosto de você, mas eu preciso levar essa cesta comigo. Tenho certeza que você deve ter comida de sobra em casa! — disse provocador, mirando-a e se esquivando dos tapinhas e joelhadas certeiras que ela tentava lhe desferir.

— Não tenho tanta comida assim, e mesmo que tivesse, essa não é a questão! — inabalável, ela persistia a tentar “escalá-lo”. — Roubar o que é dos outros é muito feio, sabia? O conteúdo dessa cesta é de alguém que neste momento precisa muito disso! — alcançou-lhe o pulso.

Ao ouvir aquilo, o lobo pressionou os lábios, afetado. Contudo, não sabia ao certo se o desconforto se dava unicamente pelo que ouvira. Ela estava próximo demais...

Droga.

— A cesta não é pra você fazer um piquenique sozinha ao ar livre? — ele perguntou, encabulado.

— Não, é claro que não! Aliás, qual seria a graça de comer sozinha no meio de uma floresta sombria? Acha que sou louca!? — falou indignada. — Ela é pra minha prima enferma. Desde pequena a saúde dela é frágil, e por causa disso, precisa de cuidados especiais.

Mediante àquela declaração, o lobo sentiu o amargor de quando se perde uma batalha. Não era malvado e compreendia muitíssimo bem como era importante para alguém doente, receber os devidos cuidados. Mesmo que precisasse demais daquela cesta, não podia privar alguém daquele direito.

Além disso, também estava ficando exaurido. Aquela garota era demais para si.

Resfolegou.

— Ah, eu desis-

E antes que o lobo se rendesse, foi surpreendido com o avanço que a garota deu sobre si. Tal como uma gata, pulou encima dele e logo depois tentou cruzar as pernas em volta de seu abdômen, em busca de alcançar o objeto.

Aquela foi uma péssima ideia.

O garoto prontamente perdeu o equilíbrio e caiu de costas no chão, levando-a consigo.

Em meio à queda, colidiram as testas um com o outro.

— Aiiiiiii!

Nene deixou um gemido de dor escapar e mesclar-se ao dele. Os olhos melancolicamente fechados enquanto sentia a ardência no local atingido.

Passaram-se alguns segundos até que ela os abrisse, e quando o fez, sentiu o ar ficar preso dentro de si. Instantaneamente, todo o seu rosto adquiriu uma tonalidade rubra.

A milímetros de distância dela, estava o ladrãozinho de cestas. O nariz dele roçando no dela. A boca quase colada à dela. O corpo inteiro dele, pressionado ao dela.

Todo ele era quente, inclusive seus arregalados olhos, que agora que observava tão de perto, notou que possuíam uma vibrante cor de xarope de bordo, com algumas nuances de dourado. Eram os olhos mais bonitos que já vira, margeados por cílios negros e longos.

Nene sentira que o tempo havia parado. Deitada acima dele, sustentava seu olhar e estudava seu belo rosto; tal como ele estava fazendo consigo naquele momento.

O silêncio era estranho e imensamente desconfortável, mas nenhum dos dois conseguia falar ou se mover; sentiam a garganta tão seca quanto areia, e o corpo tão rígido quanto chumbo. Seus corações batiam tão alto, que seus ouvidos ignoravam a ventania barulhenta que percorria ao seu redor. Era a primeira vez na vida em que se sentiam de tal forma, e tudo o que conseguiam fazer era se encarar em meio a toda aquela tensão sexual.

O garoto engoliu em seco, admirando a garota debruçada em si. Começou pelos expressivos e delineados olhos cor de fúchsia, depois observou o pequeno e arrebitado nariz. Assim que desceu os olhos em direção aos lábios rosados e entreabertos, perguntou-se se eram tão macios quanto aparentavam ser. Os cabelos cor de trigo possuíam uma pequena franja, e o restante era atado em duas longas tranças, as quais estavam roçando em sua pele e fazendo-no inalar o deleitoso cheiro frutado oriundo delas. O rubor de cansaço e vergonha em sua face, vinha como um charme a mais.

Toda ela era harmônica, encantadora e linda.

E ele estava completamente hipnotizado.

Contudo, um feitiço não dura para sempre. Suas costas doíam e todo o seu corpo estava febril — não sabia ao certo se por causa da fantasia de ovelha, ou se por causa do corpo feminino pressionado ao dele.

O lobo finalmente voltou à razão. Rapidamente substituiu a expressão anterior, por seu habitual sorriso de malícia e sarcasmo.

— Ei, por quanto tempo vamos ficar caídos no chão? — ele disse, cortando o silêncio.

Ela pareceu acordar de um transe.

— Sabe, eu preciso me levantar — insinuou com ironia.

A garota instantaneamente recuperou os sentidos e deu um pulo.

— D-Desculpa!! — falou desajeitada, passando as mãos ansiosamente pela saia do vestido de algodão. 

Ele ergueu-se do chão com um ar de indiferença perfeitamente ensaiado.

Mal sabia Nene, que o constrangimento que ele sentia era tão grande quanto o dela. O esforço que estava fazendo para encobrir o próprio rubor, era descomunal.

Calma, coração.

Frente à garota, ele fechou os olhos e deixou um arfar de resignação e aflição escapar.

Ela franziu o cenho, observando-o ir com as mãos em direção ao fecho da fantasia. De repente, tudo aquilo lhe pareceu incrivelmente dramático, deixando-a curiosa com relação ao que iria ver.

E assim ele fez: vagarosamente deslizou o zíper e despiu-se por completo do disfarce, revelando características que até então estavam omissas.

O cabelo escuro e farto do garoto era tão longo que cobria sua testa, como uma cascata escura que caía acima de seus olhos. Mas, entre os fios, surgiam duas orelhas peludas e triangulares, como as de um lobo selvagem, prontas para captar os sons da floresta. E se alguém olhasse com atenção, veria uma cauda grossa e reta, que balançava levemente atrás de suas pernas. Era uma aparência única e misteriosa, que inspirava curiosidade e temor.

Mas, apesar dessas características distintas, o garoto vestia-se como um camponês comum, com uma camiseta remendada, lederhose que iam até seus joelhos e meias e sapatos desgastados pelo tempo. Sua aparência contrastante era uma prova da mistura de natureza e cultura, selvageria e civilização, que ele trazia consigo.

Presas, orelhas e rabo. O que Nene previra, concretizou-se como um fato incontestável.

— Então você é um lobo? — ela falou ácida, cruzando os braços.

Nas terras nas quais vivia, raramente apareciam descendentes da tribo dos lobos. Tudo o que sabia a respeito deles era que se tratava de uma raça cujas habilidades físicas transcediam às humanas. Embora fossem possuidores de maior força, a maioria tratava-se de pessoas silenciosas e pacíficas. O fato de naquele momento estar em frente a um deles era de certa forma incomum.

— Sinto muito por ter enganado você — disse sincero. — Imagino que deva estar muito surpresa.

Nene ficou tentada a dizer que em nenhum momento havia acreditado que ele fosse um carneiro, mas quando olhou para ele, que visivelmente orgulhava-se das próprias habilidades de disfarce e atuação, optou por ficar calada e deixá-lo se iludir. Não iria destruir a autoestima alheia — mesmo que ele merecesse.

— Ó, sim. Estou bastante surpresa, e zangada! — fez a melhor cara de irritação que conseguia.

Ligeiramente acuado, ele inclinou-se e pegou a cesta.

— Aqui, toma — entregou-a nas mãos da garota. — Desculpe por ter te roubado. Sei que o que fiz não foi legal. De qualquer modo, está tudo aí, intacto.

Nene observou-o por algum tempo, à procura de qualquer sinal de mentira e sarcasmo nele; não encontrou.

— Tudo bem, te perdoo — disse condescendente. — Me desculpe também por ter te derrubado no chão.

Ele deu um sorriso fraco; ela o correspondeu de igual maneira.

Aquele era um daqueles climas desconfortáveis em que nenhum dos dois sabia o que dizer. Havia poucos minutos, estavam engalfinhando-se e trocando farpas; agora, enfrentavam a vergonha de se encararem e pedirem desculpas como duas pessoas civilizadas.

Após o que lhe pareceu uma eternidade, foi ele quem tomou a iniciativa de falar.

— Bem, agora que nos resolvemos, preciso ir andando... — sorriu amarelo, uma das mãos acariciando o próprio pescoço. — Tchau! — deu um pequeno aceno.

Ele virou as costas para a garota e então se foi. Os ombros caídos e a cabeça e orelhas abaixadas em derrota. Tão humilhado quanto um cachorrinho de rua.

Nene permaneceu imóvel, observando-o se afastar cada vez mais de si. Um desconforto estranho martelando contra seu peito e fazendo-lhe pressionar os lábios.

A verdade era que sentia que estava em dívida com ele. O motivo, entretanto, nem mesmo ela compreendia. Sentia-se como uma vilã sem coração, mesmo que, no final das contas, ela que tivesse sido a vítima. A imagem dele se distanciando era torturante, causava-lhe uma espécie de remorso e até mesmo tristeza. Mesmo que ele tivesse tentado lezá-la, simpatizara com ele; além disso, não parecia que ele queria roubar por mero capricho, sentira que ele precisava verdadeiramente daquilo. Ainda que não concordasse com a atitude que tivera, perdoara-o de coração e não via motivos para ser descortês ou indiferente aos problemas alheios.

Oras, quem não cometia erros?

Ela suspirou com alívio após chegar a uma conclusão justa.

— Ei, você, espera um pouco! — ela disse, correndo até ele.

— Uh, o que foi? — o garoto se virou, desentendido. A expressão de submissão ainda presente em sua face.

— Você queria comida, certo? — ele meneou fraco. — Eu posso dividir um pouco com você.

A garota sorriu cortês, erguendo e sacudindo minimamente a cesta.

O mancebo piscou algumas vezes, desacreditado. O transe demorou por alguns segundos, até que sentiu um pequeno agito no peito que logo se converteu em um enorme sorriso.

— Sério mesmo?? Obrigado!!

Ele estava reluzente.

— Disponha — ela sorriu com beatitude. — A propósito, qual é o seu nome mesmo? — deu uma risadinha sem jeito.

— Eu sou Amane. Yugi Amane — apresentou-se rápido, mal contendo a alegria.

— Prazer, Amane-san. Eu me chamo Nene. Yashiro Nene — disse com extroversão.

Prazer, Yashiro.

Ela sentiu as bochechas corarem, tamanha era a adorabilidade com a qual se referiu a ela. Ele era a primeira pessoa, além de seus pais, que a chamava daquele jeito. A ausência de qualquer sufixo fazendo soar ainda mais íntimo.

— V-vem, vamos comer!

 

— Uau! Você cozinhou isso tudo? Que incrível! — disse ele admirado, sentado sobre a toalha de piquenique forrada no chão. Os olhos brilhando de empolgação. 

— Hehe', obrigada — ela respondeu sem jeito, enquanto colocava os alimentos da cesta em cima do pano. 

Havia cozinhado o que seria suficiente para uma pessoa comer por três dias. 

Em poucos instantes, a toalha xadrez vermelha e branca foi transformada em uma obra de arte culinária, como se fosse uma paleta de cores de um artista. Cada prato, cada travessa era como um pincelada, combinando texturas e sabores de maneira harmoniosa. Os aromas que emanavam dali pareciam flutuar no ar, criando uma sinfonia olfativa que invadia as narinas de Amane. O aroma das conservas de pepino e chucrute era um convite para o paladar, enquanto o tempero das massas folhadas era um chamado para o desejo de saboreá-las. As sobremesas e geléias de frutas traziam uma doçura que era impossível resistir. A fragrância do kefir, a nata azeda, as alcaparras, a mostarda, o rábano e o endro complementavam a sinfonia de sabores, cada um contribuindo com sua própria nota para a harmonia geral. O conjunto era uma verdadeira obra-prima culinária, capaz de fazer o coração de Amane cantar de alegria. 

Aquele era o paraíso! 

— Pronto, pode comer — ela deu sua permissão sorrindo. Recuou um pouco e sentou sobre as próprias pernas, observando-o se aproximar com o pequeno prato que ela havia lhe cedido. 

— Obrigado!! 

Abanando o rabo alegremente, correu em direção às comidas, servindo-se um pouco de cada coisa. 

Duas fatias de szarlotka², dois pierogis³, dois dranikis⁴, duas fatias de kulebjaka⁵, dois golabkis⁶, um pedaço de pão de centeio com mel e geleia de morangos e dois pãezinhos de canela.

O prato era relativamente pequeno para a quantidade de comida da qual o garoto havia se servido. Isso, entretanto, não pareceu um empecilho para ele, que alegremente sentou-se na toalha sobre o chão e “atacou” a comida.

— Está gostando? — ela perguntou o óbvio, sorrindo enquanto sentada ao lado dele, observando a voracidade com a qual comia.

— Uhum! — ele assentiu com muita convicção. As bochechas tão estufadas quanto as de um esquilo cheio de nozes na boca.

— Então coma mais isto aqui também! — ela falou empolgada, inclinando-se e pegando uma porção de croquetes de bacalhau e alguns pączki7 para logo em seguida servi-los no prato do garoto. Ela sorriu. 

Ela sorriu. 

Por algum motivo Amane sentiu um friozinho gostoso no peito.

— Obrigado… — disse tímido.

Sem conseguir ser indiferente à presença feminina, agora ele comia mais devagar, degustando o sabor. Começou pelos croquetes, que comeu sem deixar sobrar um sequer, e logo em seguida provou um dos pączki.

A cena dele mastigando o bolinho nunca pareceu tão dramática à vista de Nene. Assim que o pôs na boca, o menino fechou os olhos e mastigou vagarosamente, sem emitir qualquer sinal do que estava sentindo — diferenciando-se das outras vezes, que sempre deixava escapar sonzinhos de contentamento e elogios.

Nene sentiu que estava sendo torturada pela ansiedade.

— Então, como está? — perguntou apreensiva.

— Isso é tão… — ele deu uma pausa de alguns segundos. — maravilhoso!!!! — ele abriu os olhos repletos de lágrimas emocionadas.

E desprovido de qualquer etiqueta ou convenção social, escancarou bem a boca, exibindo as presas, e jogou duas rosquinhas açucaradas de uma só vez.

Yashiro não pôde evitar a risada.

— Do que está sorrindo? — ao terminar de engolir, ele perguntou divertido. O sorriso largo evidenciando os cantos da boca cheios de geleia.

— Nada, é só que você realmente não é nenhum pouco perigoso — disse em tom afável.

Sem conseguir se controlar, a garota pegou um lencinho e se inclinou bem próxima ao rapaz, percorrendo cuidadosamente o canto sujo dos lábios dele com o tecido branco.

Tal demonstração de zelo e maturidade pegou-o completamente desavisado, fazendo com que prendesse a respiração.

— O-O q-que você quer dizer com isso? P-Por que eu deveria ser perigoso? — ele encarou o lindo rosto frente a ele, sentindo o coração inteiro se agitar.

— Bem, você é um lobo — ligeiramente austera, ela ergueu os olhos de fada em direção aos dele. 

Amane sentiu uma espécie de choque percorrer seu corpo.

— Metade lobo — corrigiu, ainda abalado, desviando os olhos e abanando o próprio rosto.

— Sim, mas ainda é um.

Ela voltou ao seu lugar.

— Que tipo de coisas você esperava que eu fizesse? — na busca por se acalmar, mordiscou mais um pączki e fechou os olhos, tentando focar no deleitoso sabor da rosquinha cremosa.

E Nene, desconcertada, simplesmente falou:

— Bem, eu fiquei com medo que você quisesse… me comer.

Amane, que já estava com a pressão altíssima, bruscamente abriu os olhos e se engasgou, ao ponto de tossir violentamente e cuspir parte da comida.

— O-O QUE VOCÊ DISSE?!

— Eu pensava que você fosse como os lobos malvados de historinhas infantis… — ela murmurou baixinho, acuada.

Ah, então era aquilo que ela queria dizer… Ei!

— POR QUE DIABOS EU IRIA QUERER TE COMER!? 

— Sei lá. Talvez porque me achasse gostosa? — arriscou.

C-Como podia ser tão direta e falar algo tão escandalizante!!? 

Ó, não havia dúvidas, ela queria matá-lo

Tudo o que restou a Amane foi deixar sua alma desfalecida subir vagarosamente em direção ao céu. 

— Amane-san, você está bem!? O que foi? — a garota se levantou preocupada e correu para socorrê-lo, dando uma chacoalhada nele. — Respire, você está todo vermelho!

— Eu… estou bem. Não se preocupe — ele recuou um pouco, fazendo uma barreira de distância entre ela e ele com as mãos. — Só fiquei um pouco… surpreso com o quão fértil a sua imaginação é — passou aflitamente a mão pelos cabelos. 

Ele deixou uma risadinha nervosa escapar pela boca. 

 — Logo que te conheci você começou a me fazer questionamentos estranhos e depois veio com aquela conversa furada de ser bom e prestativo. O que imagina que senti quando você veio se aproximando de mim, sorrindo daquele jeito? — Nene se defendeu. — “Ele me quer dentro da barriga dele!” foi o que pensei! Só depois foi que você revelou suas reais intenções. 

— Tá bem, tá bem. Foi mal — disse constrangido.

A menina então calou-se.

Depois de todo aquele desconforto, não demorou até o garoto dar por terminada a refeição. Nene, todavia, estranhou o fato de que ele não havia comido tudo. Das comidas as quais havia se servido em quantidade par, jazia intacta sua outra metade.

— Minha barriga e eu agradecemos muitíssimo — deu umas batidinhas, sem um pingo de educação, sobre o próprio estômago — Tava uma delícia! — ensaiadamente, deu um sorriso.

Cheio de energia, levantou-se do chão e com grandiosa habilidade, foi catando os lanchinhos que sobraram e os colocando dentro dos apertados bolsos da bermuda.

Nene olhou aquela cena de maneira aterrorizada. E pensar que ele enfiaria aqueles doces e salgados cheios de cobertura, recheio e molho dentro da própria roupa! Ele iria ficar todo sujo e lambuzado, fora que possivelmente as massas iriam se esfarelar e se misturar com os líquidos das outras comidas.

Fazia tempo que não se sentia tão aflita.

— Por que você não come logo tudo, ao invés de fazer isso? — ela questionou, preocupada em relação a qual seria o estado em que as comidas estariam quando ele chegasse em casa.

— Essa porção é do meu irmão — falou positivo, esboçando um sorriso bondoso ao citar o parente. — Estou levando pra ele, afinal sou eu quem traz comida pra casa.

Depois de ouvir aquilo, Nene se comoveu e passou a respeitar mais o garoto à sua frente. Ele visivelmente se tratava de um menino pobre e órfão, que virava-se como podia para sobreviver. Ver o altruísmo que direcionava ao familiar, deixando de comer tudo — porque ele certamente poderia comer muito mais — para guardar para o irmão, provava que Amane era uma boa pessoa.

— Ah, então espere um pouco.

Após recolocar os refratários dentro da cesta, inclinou-se e fez uma dobra sobre a toalha vazia no chão, dando-lhe um formato de losango.

— Tire as comidas do bolso e coloque-as aqui em cima — ela indicou o pano; ele a obedeceu.

Em sua generosidade, Nene acrescentou mais um monte de lanchinhos e então fez uma trouxa e deu-lhe um nó.

— Pronto. Aqui tem o suficiente pra você e seu irmão comerem hoje e amanhã. Gostaria de dar tudo, mas infelizmente não posso — justificou.

Ainda que tivesse dito aquilo, na verdade ela havia doado até demais. Noventa por cento do que estava na cesta havia sido dado. Mei, ainda que estivesse doente, não passava necessidades. Nene poderia cozinhar uma nova refeição para a prima quando chegasse lá. Era algo simples de ser resolvido.

Ela passou uma longa mecha de cabelo por trás da orelha e então entregou, sorrindo, o pequeno embrulho nas mãos do garoto.

Amane abaixou os olhos e encarou por alguns segundos aquele presente. Chegava até mesmo a pesar em suas mãos. Quando havia sido a última vez que alguém demostrou aquele tipo de preocupação para consigo? Em todos os catorze anos de vida que possuía, jamais havia recebido uma doação tão generosa. Estava sem palavras.

— Nossa! Nem sei o que dizer — ele ergueu os olhos emocionados, tentando inútilmente reprimir o sorriso. — Muito obrigado, Yashiro. De verdade.

A voz dele estava séria e oscilante. Vulnerável, até.

Ele estava corado e sorria de um jeito lindo, carregado de afeto, sinceridade e pureza. O brilho do sol refletindo em sua tez e ressaltando seus longos e curvos cílios negros.

Ele era verdadeiramente lindo.

— Não tem de quê — ela disse, mal sabendo como lidar com o próprio embaraço. — Fico feliz em poder ajudar.

Os olhos dela encararam os dele e assim permaneceram por alguns segundos, em meio àquela silenciosa confissão. Peônias e flores de laranjeira; pêssego e framboesa. Uma combinação viva e calorosa, capaz de despertar os sentimentos mais doces. Perfeita.

— Eu… preciso ir agora — a garota se pronunciou ao que umedeceu os lábios. — Ainda tenho que fazer uma visita à minha prima.

— Ah, sim, claro! Eu também preciso ir — lembrou-se, um pouco tolo. — Mal posso esperar pra ver a reação do Tsukasa quando se deparar com tudo isso — sorriu largo. — Valeu por tudo.

Ela assentiu minimamente.

Com relutância, ambos deram as costas e se afastaram. Quando estavam a mais ou menos vinte metros de distância um do outro, o garoto gritou às costas dela:

— Tchau, Yashiro. Espero poder te encontrar de novo qualquer dia! 

Ele sorria e acenava energeticamente. 

Nene não conseguiu conter o sorriso e acenou de volta. Havia ganho um amigo. Sentia-se recompensada.

Depois disso cada um seguiu seu rumo. 

 

Uh, Nene? Que surpresa te ver!! O que faz aqui? — uma Shijima Mei trajada por pijamas abriu a porta. Os cabelos tom de centeio recaiam desordenadamente pela testa e seus lábios pálidos denunciavam seu estado de saúde. Ainda que o cansaço estivesse explícito em toda ela, não havia dúvidas que o sorriso iluminado que naquele momento exibia era sincero.

— Vim cuidar de você. Trouxe lanchinhos também — Nene sorriu, erguendo a cesta. 

Mei deixou um suspiro escapar. 

— Awwn! Eu fico impressionada com o quão incrível você consegue ser — afirmou comovida. — Vem, entra, Nene.

A porta foi fechada.

Elas então trocaram aqueles abraços de corpo inteiro que exalavam carinho mútuo. 

— Tenho tanta coisa pra te contar!

— Jura? Ainda bem, porque desde que fiquei doente, minha vida nunca esteve mais chata.

Depois disso passaram o resto da manhã conversando sobre o estado de saúde de Mei. Nene fez alguns chás com base no conhecimento que tinha sobre ervas medicinais e esquentou o ensopado que trouxera. Mais tarde, enquanto comiam e discutiam trivialidades, Nene acabou mencionando seu encontro com Amane. Contou-lhe sobre tudo o que ocorreu naquela manhã, omitindo alguns detalhes vergonhosos.

— Você tinha que ver o quão feliz ele ficou, Mei! Nunca me senti tão bem em ajudar alguém — disse ela sentada ao lado da cama de Mei, tomando uma xícara de chá.

— Eu sei bem o que é esse sentimento. É realmente incrível — Mei concordou, logo em seguida levando uma colher em direção à boca. — Hmmm… Isso aqui tá muito bom!

— Obrigada. Me pergunto se ele já chegou em casa…


Amane assobiou alegremente até chegar em seu destino. Felicidade cintilava em seus olhos e bem aventurança tomava seu coração. Possuía um ar de garoto curioso, sonhador, apaixonado. Depois de dias exaurido pela fome, finalmente estava voltando com comida de verdade em mãos. Era uma felicidade surreal, daquelas que nos fazem sorrir para o nada, dançando e festejando a própria sorte. 

Enquanto o garoto caminhava pela floresta, o cheiro forte e penetrante do almíscar o envolvia como um abraço, fazendo-o sentir como se estivesse sendo guiado por uma mão invisível através do denso emaranhado de árvores e arbustos. Cada passo que dava deixava um rastro na camada espessa de folhas mortas que cobria o chão, criando um som abafado e suave que ecoava pela floresta.

Ao adentrar o casebre abandonado que chamava de lar, recebeu o ar úmido e pesado quase como um golpe; era difícil de respirar, como se estivesse mergulhando em um lago escuro e profundo. O cheiro mofado das paredes de madeira em decomposição misturava-se com o odor de mofo e sujeira que permeava o ambiente.

O casebre parecia um lugar onde a vida não tinha mais vez, onde tudo era escuro, doente e desesperador. Mas mesmo assim, o garoto encontrava uma pequena luz de esperança na presença de seu irmão, o único membro de sua família que restava vivo e que ele faria qualquer coisa para proteger.

Em outras ocasiões, Amane sentiria que estava pisando em ovos a cada passo dado, mas naquele momento sequer precisou ensaiar uma felicidade inexistente. Seu sorriso era tão grande que chegava a brilhar.

— TCHAM, TCHAM, TCHAM… ADIVINHA QUEM ESTÁ DE VOLTA~ — cantarolou exibindo-se. 

O menino caminhou em direção à cama onde seu irmão gêmeo jazia, sua figura frágil e pálida destacando-se contra os lençóis sujos e desgastados.

O acamado prontamente ergueu os olhos e sorriu. Exalava um cheiro doente e adocicado de suor misturando-se com o odor animálico do almíscar que ainda permeava suas roupas. Tinha um aspecto cansado, frágil. Um ar de criança sofrida mas que ainda assim, enxergava alegria na vida. 

— Irmão! — tossiu com dificuldade. — Que bom te ver de volta. Dessa vez você demorou.

Amane segurou a mão do irmão e sorriu, sentindo a pele fria e úmida sob seus dedos. Era um toque suave, quase imperceptível, mas que transmitia todo o amor e cuidado que ele tinha pelo irmão. 

— Como está sua febre? — cuidadosamente desceu a mão sobre a testa de Tsukasa, constatando que finalmente estava afebril.

— Tô um pouco melhor, eu acho — o garoto tossiu, ergueu as costas e, pela primeira vez, reparou na trouxa que o mais velho segurava. — Maninho, não me diga que depois de tantos fracassos vergonhosos você finalmente teve sucesso na vida do crime! — disse assombrado e de orelhas em pé, olhando para a fantasia de ovelha encardida que repousava acima do ombro de Amane.

Teria alguém realmente tolo o suficiente para ter caído naquele truquezinho patético!?

Amane deu uma risadinha.

— Por incrível que pareça, isso aqui foi uma doação — falou cheio de orgulho.

— Você tá brincando! — arregalou os olhos. — Quem foi a alma bondosa que fez isso pela gente?

Não estavam habituados a esse tipo de generosidade.

Quando pensou na garota, a primeira coisa que veio na mente de Amane foi a figura dela com asas angelicais e auréola na cabeça, rodeada por flores e rococós. Aquilo o fez sorrir.

— Ahhh, o nome do meu anjo- Digo, o nome dela é Yashiro — o garoto declarou com ar apaixonado. — E ela é tão… incrível. Mesmo depois de ter sido enganada por mim, — dizia inocente. — ela me deu de comer e doou mais um montão de coisas. Olha só o tanto de comida que tem aqui!

Em meio a todo aquele deslumbre, o adolescente desamarrou a trouxa e abriu o tecido sobre a cama. 

Um festival de aromas flutuou pelo ar.

Tsukasa, que estava habituado apenas a ver repolhos e batatas — isso quando tinham a sorte de ter o que comer —, arregalou os olhos perante tudo aquilo. Simplesmente não podia crer. Era como ter sido presenteado com um banquete direto dos céus. Sentia-se como alguém da realeza.

O mais novo ergueu os olhos estaticamente em direção ao irmão, num pedido silencioso para que o outro confirmasse que aquilo era mesmo verdade.

Amane sorriu ao que assentiu brevemente com a cabeça.

Com certa maturidade, o mais velho abraçou o irmão, vendo as lágrimas de emoção e euforia que brilhavam em seus olhos.

Desde a morte da mãe, viúva e única mantenedora da família, falecida há um pouco mais de um ano atrás, as coisas não vinham sendo fáceis. Moravam no coração de uma floresta escura, e por mais contraditório que aquilo pudesse parecer, nem sempre conseguiam algo digno para comer. Às vezes o cardápio era insetos, pequenos peixes, minhocas ou qualquer herbívoro de pequeno porte; outras vezes, capim e frutinhas silvestres. Não se arriscavam a caçar javalis selvagens, afinal, eles eram violentos e assustadores demais para duas crianças conseguirem lidar. Havia também as vezes em que não conseguiam achar nada e a única opção era beber água e aguentar a fome — aquela era uma realidade frequente.

Mas as coisas se agravaram ainda mais quando Tsukasa adoeceu no inverno e ficou confinado em uma cama, com febre alta. Amane precisava se virar sozinho em busca de alimento, enquanto tentava desesperadamente conseguir ajuda e trabalho. Mas a discriminação por ser de uma raça diferente o impedia de conseguir qualquer ajuda.

Era difícil para Amane aceitar o que estava fazendo. Sua mãe o havia educado para ser uma pessoa íntegra e honesta. Mas a fome e a doença do irmão o fizeram perceber que ele precisava ser um lobo malvado para garantir a sobrevivência deles; se não conseguia a própria subsistência de forma honesta, então precisaria se tornar o vilão que assaltava transeuntes na rua.

Certamente sua mãe ficaria decepcionada se soubesse o tipo de coisas que andara fazendo nos últimos dias. Desde cedo lhe ensinou o que era certo e errado; o que ia de encontro aos valores éticos e o que não. Não havia educado-o para se tornar um charlatão que saía por aí tentando aplicar golpes nos outros. Mas ainda assim, após dar-lhe um puxão de orelha, abraçaria-o e diria que tudo ficaria bem. Que sentia muito por não ser uma mãe perfeita e por ele ter chegado a um estágio tão extremo por conta do desespero. Ele então choraria em seus braços e pediria desculpas sinceras, embalados no calor um do outro.

Embora muito sentisse sua ausência, para Amane o mais importante era saber que ela os amava demais e os observava lá do alto, nas estrelas. Aquele era seu maior conforto em meio a tantas adversidades.

O garoto sorriu, grato pelos acontecimentos daquele dia.

Espero conseguir te reencontrar logo e agradecer devidamente, Yashiro. 


Três semanas depois 

O perfume das flores criava uma sinfonia olfativa capaz de fazer até mesmo o mais carrancudo e amargurado dos homens sorrir. Sol quente e brilhante, abelhas, plantações de lupinos e uma costa marítima a metros de distância. Um cenário propenso a passeios matinais e momentos de descontração familiar. Risadas podiam ser ouvidas de longe, mesclando-se ao som das gaivotas e ondas quebrando sobre as rochas escarpadas.

Nene, com seus cabelos soltos, capa vermelha e um vestido de algodão, colheu uma pequena flor e a aproximou de seu nariz, absorvendo com deleite o aroma suave e adocicado. Com os olhos fechados, sorria ao apreciar o vento acariciar suas pernas. Sentia a brisa suave trazer uma mistura de aromas: a frescura do mar, o cheiro do trevo vermelho recém-cortado e o perfume doce e floral das diversas flores em toda parte.

A primavera sempre foi a estação mais inspiradora para Nene. Ela adorava ver as plantas florescerem e as criaturas da natureza saírem de suas tocas para aproveitar o clima agradável. Era um tempo de renovação e renascimento, uma época para se regozijar na beleza da natureza e tudo o que ela tinha a oferecer.

De repente, uma forte rajada de vento soprou, varrendo o campo.

Em meio ao seu torpor, Nene abriu os olhos apenas segundos depois do laço do chapéu de palha afrouxar sob seu queixo; o atavio fora carregada pelo vento como um dente-de-leão rodopiante, até desaparecer no horizonte.

Rindo daquela imprevisibilidade, a garota correu alguns metros até onde o adorno caira. A cada passo dado, o vento soprava mais forte, dificultando ainda mais sua busca.

Nene se viu cercada por um mar de lupinos roxos, suas folhas roçando contra sua pele. Aquela vastidão florida impedia-lhe de ver onde item havia caído. Olhou em todos os lados e tudo o que viu foram mais e mais fileiras de lupinos roxos, todas idênticas uma da outra.

De repente, um movimento chamou sua atenção. De dentro da mata florida emergiu um jovem, seus cabelos negros caindo desgrenhados sobre a testa. Nene notou seus olhos âmbar brilhando como ouro na luz do sol, suas orelhas pontudas eram um detalhe interessante. Ele segurava seu chapéu, e Nene sentiu uma enxurrada de borboletas em seu estômago. Parecia incapaz de conter as próprias reações nervosas.

Ele estava de pé a exatos seis metros de distância de si. Olhava-a com um sorriso brincalhão e satisfeito.

— Acho que o chapéu pertence à senhorita — disse arteiro, caminhando até a garota e estendendo o chapéu em direção a ela.

Mesmo com as mãos trêmulas ela tomou o chapéu de volta.

— Amane-kun, é você mesmo!!— ela sorria abrilhantada. — Como você e seu irmão estão? Estou tão feliz!! O que faz por aqui? 

Seus olhos brilhavam.

— Tsukasa e eu estamos ótimos, inclusive ele pediu que eu agradecesse por ele — sorriu. — Consegui uma casa e emprego aqui por perto e decidi te encontrar. Seus vizinhos parecem gostar bastante de você, chapeuzinho vermelho

Ele provocou em tom de galanteio. 

Nene corou até a ponta do nariz ao ouvir o próprio apelido escapar pelos lábios dele.

— J-Jura?! Que maravilha! Fico muito feliz em saber disso. Vocês merecem tudo de bom que há no mundo.

Mesmo desconcertada, teve o impulso de abrir os braços e o abraçar forte, genuinamente feliz por ele. 

O garoto riu anasalado.

— Obrigado — disse ele, correspondendo o amplexo.

Depois de longos segundos ela se afastou, tímida.

— Sabe, desde nosso encontro eu venho passando pelo mesmo caminho na esperança de te reencontrar. 

Nene não soube o que dizer. Era como se tivesse desaprendido a falar. Tudo o que era capaz de fazer, era sorrir como uma tola.

Ele também pensava nela, tal como ela nele.

Amane contemplou Nene. Ela estava tão bela como uma flor recém-desabrochada, irradiando alegria e vida. Ele ficou momentaneamente sem palavras, admirando-a em silêncio antes de dizer:

— Você está ainda mais bonita do que eu me lembrava.

Nene sentiu o coração bater ainda mais forte. Ela se perguntava se Amane podia ouvir as batidas, que pareciam tão altas como os sinos de uma catedral.

— Você também está bonito — falou envergonhada.

E de fato, estava mesmo. Havia ganho peso e havia cor em seus lábios. Os atributos que antes já eram atraentes, haviam sido ressaltos. Estava vestindo roupas melhores e até parecia um pouco mais alto. 

Ele sorriu largo.

— Eu estava pensando em caminhar até a costa mais tarde, para ver o pôr do sol. O que você acha? — Amane sugeriu, tentando parecer casual, mas Nene podia ver a expectativa em seus olhos.

Ela sorriu, sentindo como se o mundo inteiro pudesse ser conquistado com aquele sorriso.

— Parece perfeito, mas ainda está cedo. O que acha de um piquenique? — propôs a garota.

Amane concordou imediatamente com a sugestão de Nene, feliz por passar mais tempo com ela. Nene levou o garoto para sua casa e o apresentou aos seus pais, recebendo sua aprovação. Desprovidos de preconceitos, o gentil casal havia se encantado com ele e disseram estar felizes em saber que a filha cultivava uma amizade tão boa — ela havia lhes contado sobre o amor de Amane pelo irmão. Teria sido ainda mais perfeito, se sua mãe não a tivesse envergonhado, revelando que ela não parava de falar dele um instante sequer desde que o conheceu. Sentindo-se exposta, Nene tratou de se esconder na cozinha e improvisar lanches para o piquenique.

Terminado de montar a cesta, Amane e ela saíram de casa e encontraram um lugar aconchegante, sob a sombra de uma árvore alta. Nene estendeu uma toalha xadrez vermelha e branca e começou a tirar as comidas de sua cesta de piquenique. Amane a ajudou a montar tudo, e juntos eles se sentaram para desfrutar da comida e da companhia um do outro.

Foi um momento bastante agradável, mas diferente de como havia sido na primeira vez. Nessa ocasião, estavam mais cientes um do outro. Mais amadurecidos e interessados em se conhecer. Havia intimidade e profundidade no que era dito.

Conversavam sobre a vida, seus sonhos e esperanças para o futuro. Amane extendeu-se falando sobre seu passado, sobre as particularidades de ser metade lobo, sobre seu trabalho recém-adquirido como pastor de um pequeno rebanho de ovelhas, sobre a bondade com a qual ele e o irmão vinham sendo tratados desde que conseguiram abrigo na casa de seu empregador — um professor chamado Tsuchigomori, que embora não fosse o mais simpático dos homens, possuía um coração de ouro e se sensibilizou tremendamente quando ouviu os relatos de Amane, ao ponto de no mesmo dia tratar de arranjar um cômodo vago em sua casa para admitir duas crianças —, sobre a felicidade constante que sentia por ser tratado dignamente, e sobre seus sonhos de um dia viajar pelo mundo e, quem sabe, pisar na lua. Já Nene, revelou curiosidades sobre si mesma, falou sobre seu amor pela plantação de flores, alguns de seus hobbies e seu desejo de um dia ter sua própria padaria.

Entre risadas e gracejos, não demorou até a tarde chegar.

— Vamos? — o garoto convidou, em pé, estendendo-lhe a mão enquanto sorria.

Nene assentiu sorrindo. Aceitou a mão que lhe era estendida e levantou do chão.

Sem quebrarem o contato, os dois seguiram juntos, de mãos dadas, como se a primavera estivesse guiando-os por um caminho de flores e felicidade. O vento fresco da tarde balançando os caules das flores, produzindo uma música suave e relaxante.

Frente à costa do mar, o sol começava a se pôr no horizonte, banhando o céu em tons de laranja e rosa. Amane e Nene se deitaram lado a lado na areia, observando a beleza da natureza, e se perderam no momento, como se nada mais importasse além da companhia um do outro.

— Ei, eu me diverti bastante hoje — Nene falou em tom baixo, virando o corpo na direção dele. — Obrigada por vir me ver — disse terna.

Ele sorriu.

— Já te disseram que você é fofa pra caramba?

Ela riu.

— Já, mas eu gosto de ser relembrada.

Amane deu uma risadinha que evidenciou seus caninos.

— Você é fofa demais.

Nene sentiu seu rosto corar e desviou o olhar, concentrando-se na beleza do céu ao seu redor. As ondas quebravam suavemente na praia, criando uma melodia relaxante e hipnotizante. O vento era leve, mas suficiente para agitar sua franja e dar uma sensação de liberdade.

Amane, percebendo o silêncio da garota, seguiu o olhar dela em direção ao céu.

— Olha, parece que tem um pássaro sobrevoando ali — ele apontou para uma gaivota que planava em círculos, observando-os de cima.

— É lindo — ela murmurou, voltando o olhar para ele. — Sabe, embora eu me dê bem com a maioria das pessoas, nunca fui muito boa em conversar com gente nova, mas com você eu me sinto tão à vontade.

Amane se aproximou mais, seus rostos agora a poucos centímetros de distância.

— Eu também me sinto assim com você — ele sussurrou, olhando intensamente para seus olhos.

Ela umedeceu os lábios.

— Tá a fim de fazer uma promessa? — perguntou a garota. 

Amane arqueou uma sobrancelha, curioso. 

 — Que tipo de promessa?

Nene sorriu.

— Que todo domingo nós iremos nos encontrar e nos divertir juntos, como hoje. Vou preparar um monte de pączkis, pois percebi que você os adora. E quero que traga seu irmão também. Meus pais são legais e tenho certeza que não vão proibir.

Ele a observou detidamente, absorto.

— O que foi? Não gostou da ideia? — perguntou ingênua.

Ele tocou o rosto dela beirando a devoção.

— Nada, é só que você é incrível.

Nene sentiu como se estivesse diante de um sol ardente. Sentia uma chama se acender dentro dela, como um pássaro cantando uma canção de amor.

— Você é especial para mim, Nene — disse ele, com um brilho nos olhos. A voz rouca. — Tive muita sorte por te conhecer.

Ela sentiu um arrepio percorrer seu corpo, e não pôde deixar de sorrir ainda mais. Tudo parecia perfeito. Era como se o mundo ao seu redor tivesse parado, e apenas eles existissem naquele instante. A praia, o céu, as ondas e a gaivota pareciam todos estar ali para testemunhar aquele momento.

— Eu me sinto da mesma forma — disse Nene, sorrindo para ele.

Amane sorriu de volta para ela e pegou sua mão. Ela sentiu um calor se espalhar por seu corpo ao sentir o toque dele. 

— Então, é uma promessa? Todo domingo vamos nos encontrar e nos divertir juntos? — perguntou Amane, ainda segurando a mão de Nene.

— É uma promessa — respondeu ela, sorrindo.

Entrelaçaram os mindinhos.

Eles ficaram ali por mais alguns minutos. Nene sabia que aquele momento era especial. Ela sentia que havia encontrado alguém especial, alguém que ela desejava manter por perto.

Quando o tempo começou a escurecer, eles se despediram e combinaram de se encontrar no próximo domingo.

— Até logo, Amane-kun — ela falou cheia de segundas espectativas quando já estavam em pé. O corpo dele fazendo sombra acima do seu com os poucos resquícios de luz do sol que ainda havia.

— Até mais, Yashiro.

E então foi surpreendida quando ele se inclinou e pressionou um beijo suave no canto de seus lábios. Ela sentiu um turbilhão de emoções e sensações que a fizeram fechar os olhos por um momento, apreciando toda aquela ternura. A areia sob seus pés parecia macia e quente, e o mar, que parecia tão imenso, estava agora bem ali, ao seu alcance.

Quando finalmente se separaram, Nene abriu os olhos e olhou para Amane. Ele estava sorrindo para ela, os olhos brilhando com uma mistura de ternura e atrevimento. Nene sentiu como se estivesse flutuando, como se nada pudesse tocá-la ou abalar sua felicidade.

Ela sabia que aquele beijo seria para sempre gravado em sua memória, como um tesouro precioso que ela guardaria em seu coração. E assim, com um sorriso no rosto e o coração cheio de alegria, ela se despediu de Amane, ciente de que o próximo encontro, e todos os outros que viriam, seriam ainda mais especiais.





DICIONÁRIO:
Shchi¹: Sopa de repolho tradicional russa, rica em legumes;

Szarlotka²: Torta de maçã originária da Polônia;

Pierogi³: ; Pastel cozido muito apreciado na culinária europeia, o qual pode ter inúmeros recheios; 

Draniki⁴: ; Panqueca de batatas reconhecida como prato nacional da Bielorússia

Kulebjaka⁵: Também chamado Coilibiac, é um prato de origem russa semelhante a uma torta ou calzone, feito com massa de pão ou massa folhada, podendo conter os mais diversos recheios;

Golabkis⁶: Prato originário da Polônia, feito a partir de folhas de repolho cozidas e recheadas, semelhantes aos charutos árabes;

Pączki7: Rosquinhas recheadas polonesas, semelhantes com sonhos de padaria ou donuts (inseri eles na história porque todos nós sabemos o quanto Hanako-kun ama donuts <3)

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